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Livro Gestão Moderna de Produtos

Produto como Plataforma

Não ser plataforma tecnológica não é opção hoje em dia. Grandes empresas só conseguiram controle e escala criando mecanismos que transformaram seus serviços em grandes plataformas que conectam pessoas e empresas.

Sejamos francos, existem duas épocas claramente distintas na humanidade: o antes e o depois do mp3.

O mp3 é um formato de áudio digital desenvolvido na Alemanha no final de 1980. A ideia era que as pessoas tivessem um formato que possibilitasse ouvir músicas em alta qualidade, mas com um arquivo digital muito pequeno, de forma que você pudesse ter todas as suas músicas no formato digital, em vez de milhares de pilhas de CDs.

Depois que o mp3 surgiu, ele se transformou em um fenômeno. Aqui no Brasil (e no mundo), aparelhos que tocam mp3 começaram a surgir por todo o canto.

Todo mundo tinha um aparelho desse tipo ou muito parecido. Imagem em domínio público.

"Ripar" CDs era um termo comum e praticamente um novo hobby para os aficcionados. Eu mesmo passava horas "queimando" meus CDs, organizando os nomes das músicas, organizando pastas, procurando na internet as imagens das capas (covers) e as letras das músicas. Todo mundo tinha seu Winamp bem configurado e personalizado.

Essa facilidade do mp3 também abriu portas para a pirataria. Kazaa, Napster, eMule, Limewire e vários outros eram as portas de entrada para um mundo totalmente novo de acesso ao entretenimento musical (e outros assuntos). Pelo fato de o mp3 ser um arquivo tão pequeno, era muito fácil, até mesmo para conexões lentas, encontrar e baixar discografias inteiras de artistas na internet. Foi aí que a indústria fonográfica passou por sua maior crise.

Com o alto preço dos CDs e praticamente nenhuma inovação tecnológica ou mudança drástica no modelo de distribuição e de negócio, o mp3 combinado com a pirataria passou o rolo compressor nessa indústria tradicional, forçando todo um setor a repensar a forma com que seus negócios eram feitos. Logo em 2001 uma série de processos legais partindo da indústria fonográfica juntamente vários artistas fecharam Napster, que na época, simbolizava todo esse movimento libertário e revolucionário que levou uma nova forma de lidar com nossas músicas prediletas. Neste mesmo ano, a Apple lançou a primeira versão do iTunes.

O iTunes surgiu como uma alternativa para ouvir músicas de forma legal, real e oficial, ao mesmo tempo com o preço justo. Existe toda uma história interessante sobre as negociações que o Steve Jobs fazia com as gravadoras pessoalmente, mostrando como esse mercado era cabeça dura. Mas a distorção da realidade do Steve Jobs era maior que a teimosia do mercado e todos os arranjos foram feitos para que o iTunes pudesse ser um marco na história.

Inicialmente o iTunes surgiu para ajudar a organizar as músicas digitais que você já tinha extraído dos seus CDs. Inclusive, ele até ajudava neste processo. No início, era moleza, mas depois, começou todo o processo de estabelecimento de DRMs e afins. Mas em 2003 a Apple lançou a iTunes Store, vendendo músicas por USD$ 0,99. Aí o resto é história. O iTunes foi a fagulha inicial para o iPod e posteriormente para o iPhone.

Eu seria muito injusto se não citasse aqui o Pandora. Em 2005 o Pandora foi talvez o primeiro serviço de streaming de música, que de certa forma inspirou todos os serviços que conhecemos hoje. O funcionamento era bastante simples: o Pandora funcionava como uma rádio personalizada, onde ele recomendava músicas de acordo com os gostos dos usuários.

O MySpace apareceu, mas foi embora relativamente rápido. No linguajar de hoje, diríamos que o MySpace não soube encontrar o seu Product Market Fit. Alguns serviços bem legais (que uso até hoje) como o Last.fm, que embora existam até hoje, caíram no esquecimento geral, não sendo tão fortes ou úteis como antigamente. A única certeza é que desde então a indústria fonográfica, na minha opinião, não conseguiu retomar totalmente o domínio de antes.

Todas essas iniciativas abriram portas para novas ideias que transferiram boa parte da autonomia que as grandes gravadoras controlavam para outras empresas e principalmente para os artistas. Ficou escancarado que esse mercado era controlado de forma abusiva pelas gravadoras. Toda a cadeia, desde a manufatura até a distribuição das músicas era controlado e bem arranjado pelas gravadoras que geralmente até detinham os direitos autorais das músicas distribuídas.

Vendo todo esse movimento, diversos artistas começaram a tentar trabalhar longe desse controle autoritário das gravadoras, tendo em vista a grande possibilidade de estar mais próximo do seu público, sem intermediários. Vide Radiohead, que em 2008 liberou online o álbum In Rainbows no formato "pague o que quiser”.

É no meio dessas reviravoltas que o Spotify surge em 2008. Uma empresa baseada em Estocolmo começou com 50 milhões de faixas, no modelo freemium, onde você poderia ouvir músicas de graça, com propaganda e tudo fora de ordem. Mas foi só em 2011, com o lançamento nos Estados Unidos, que o Spotify virou um verdadeiro fenômeno.

Mas por que ele e não outro serviço? Vários outros, como citamos, já faziam streaming de músicas, com funcionalidades, experiências e com um acervo de música tão bom quanto o do Spotify, mas que não perduraram e não evoluíram de forma estruturada.

Vários motivos fizeram o Spotify ser o que ele é hoje, inclusive o bom timing de lançamento, toda a progressão de maturidade do mercado e a promessa desbloquear o potencial criativo humano dando a milhões de artistas a oportunidade de viver da sua arte, dando a oportunidade a bilhões de fãs de curtirem e se inspirarem.

Nossa missão é liberar o potencial da criatividade humana, dando a um milhão de artistas criativos a oportunidade de viver de sua arte e bilhões de fãs a oportunidade de desfrutar e se inspirar por ela . – Texto do próprio Spotify sobre sua missão[1]

Mas a sua progressão estrondosa só foi possível por causa da estruturação e visão de não apenas criar um app de streaming de música, mas uma plataforma que possibilitasse artistas a exporem seu trabalho e a fãs ouvirem esses trabalhos.

Modelo linear tradicional

No capítulo em que falamos sobre construir um produto com um fundamento de serviço, analisamos que o modelo de negócios padrão de construção e distribuição de produtos (seja físico ou digital) é bastante linear. Até pouco tempo, as empresas criavam um produto em uma ponta, e distribuíam para os consumidores (outras empresas ou pessoas) na outra ponta do processo. E durante esse processo, as empresas, com a ajuda do marketing, tentavam agregar valor ao produto de diversas formas.

Esse tipo de modelo tem perdido sua força perante empresas que trabalham mais com o formato baseado em plataforma do que com o formato linear. Empresas como Airbnb, Twitter, Facebook, Spotify e Uber trabalham em um formato onde eles diminuem ao máximo os custos com estrutura, ao mesmo tempo que potencializam seus próprios caminhos se transformando no principal ponto de contato com a grande massa de usuários, impactando mercados e principalmente a sociedade.

Quando empresas estão trabalhando no modelo de negócios linear, na maioria das vezes eles dependem de intermediários que diminuem a possibilidade de escala do mercado. Veja bem o mercado editorial: você não pode (podia) publicar um livro se não fosse por uma editora. As editoras, por sua vez, filtram uma série de propostas de livros e escolhem apenas aqueles têm alto potencial de rentabilidade. Até mesmo a análise para entender quais livros podem ter esse potencial de rentabilidade é bastante falho.

Quando a Amazon entrou neste mercado com o Kindle, eles criaram para que qualquer um pudesse ter seu livro publicado e divulgado para o grande público. Foi daí que o Chris Anderson explica o termo termo Long Tail[2]. A Amazon por sua vez não precisa ter um best-seller como uma editora, ela só precisa vender muitos livros, não importa a qualidade, não importa se é de um autor conhecido ou desconhecido, ela só precisa vender milhões e milhões de livros.

Se você facilita a busca das pessoas por produtos, em vez de canalizar e focar as buscas e os gostos das pessoas em poucas opções, você cria uma forma de distribuir produtos de forma mais pulverizada. Juntamente com algoritmos que recomendam livros baseados nas buscas, compras e navegação dos usuários, você consegue entender melhor quais livros e conteúdos têm mais potencial de venda, sendo ou não um best-seller. Isso cria uma distribuição menos concentrada de vendas, quando comparado com canais tradicionais. Aquela história de que 20% dos produto são responsáveis por 80% da rentabilidade vira mentira neste novo formato.

"A maioria das pessoas adivinha 20%, e por um bom motivo: fomos treinados para pensar dessa maneira. A regra 80-20, também conhecida como princípio de Pareto (em homenagem a Vilfredo Pareto, um economista italiano que concebeu o conceito em 1906), está ao nosso redor. Apenas 20% dos grandes filmes de estúdio serão sucessos. O mesmo para programas de TV, jogos e livros de mercado de massa – 20% todos. As chances são ainda piores para os CDs de grandes gravadoras, onde menos de 10% são lucrativos, de acordo com a Recording Industry Association of America." — Chris Anderson, em https://www.wired.com/2004/10/tail/

Esse fenômeno é muito mais visível e exponencial em ambientes digitais. Exatamente por que é mais fácil de escalar e principalmente por que tem menos intermediários. A partir do momento em que não há alguém ou uma instituição filtrando e controlando o que pode ser ou não publicado, vendido, veiculado, temos a possibilidade de aumentar a escala e impactar mais pessoas.

Curva clássica da Long tail

O impacto no Long Tail é menos centralizado e mais pulverizado. Nada como o modelo tradicional onde poucos produtos escolhidos impactam milhares de pessoas… mas milhares de produtos impactando milhares de pessoas. Isso quer dizer que embora para a empresa que distribui seja ótimo ter milhares de pessoas impactando outras milhares com seus produtos, para essas pessoas que produzem e disponibilizam seu trabalho, pode não ser tão bom assim. Digamos que um autor desconhecido publique seu livro na Amazon. Ao contrário de um autor de best-seller, ele venderá apenas alguns livros, que provavelmente não serão suficientes para que ele viva disso ou alcance um patamar tal que o motive a escrever um próximo livro, a não ser que ele esteja fazendo apenas para saciar um objetivo ou um desejo pessoal. Logo, muitas pessoas que fazem parte da Long Tail são muito pouco impactadas, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista de popularidade.

Contudo, toda essa mudança de paradigma, saindo de um formato mais centralizado para um formato mais pulverizado, trouxe para os consumidores a possibilidade de escolher entre produtos que realmente atendam às suas necessidades, que geralmente não estavam atrás de uma grande marca ou empresa.

Mas, a chance foi dada. Se antes, havia poucas empresas selecionando e filtrando o que poderia ser um potencial de rentabilidade, hoje tudo é mais democrático, jogando a responsabilidade de ser um Blockbuster no colo das próprias pessoas.

O modelo de plataforma

A palavra “plataforma” aplicada a produtos digitais ficou bastante comum na última década, quando livros e artigos começaram a explicar como as empresas de tecnologia estavam literalmente quebrando grandes empresas de indústrias totalmente estabelecidas nos seus mercados.

Essas grandes empresas - que se comportavam como intermediários detratores e controladores dos seus respectivos mercados - ditavam regras e as pessoas ou outras empresas menores deviam seguir, não por serem obrigadas, mas por estarem do lado do processo que não tem poder para mudar ou influenciar as regras existentes.

Quando nos referimos às empresas que trabalham no modelo de plataforma, estamos falando de empresas que têm um crescimento acelerado, por um motivo simples: elas são mais leves e usam a tecnologia para potencializar seu crescimento.

A HBR (Harvard Business Review) tem uma análise muito interessante que mostra que existem 4 modelos de negócio[3]:

  • Construção de Ativos: Empresas que constroem, desenvolvem, distribuem e vendem ativos físicos. Exemplos incluem Ford, Wal-Mart e FedEx.
  • Prestação de serviços: Empresas que contratam funcionários que prestam serviços aos clientes ou faturam horas. Exemplos incluem Accenture, Jüssi, JP Morgan.
  • Criadores de Tecnologia: Empresas desenvolvem e vendem propriedade intelectual, como software, análises, produtos farmacêuticos e biotecnologia. Exemplos incluem Microsoft e Oracle.
  • Orquestradores de rede: Empresas que criam uma rede de parceiros na qual os participantes interagem e compartilham na criação de valor. Eles podem vender produtos ou serviços, criar relacionamentos, compartilhar informações, críticas, colaborar, cocriar e muito mais. Exemplos incluem eBay, Mercado Livre, Uber e Tripadvisor.

Dos quatro tipos, o modelo Orquestradores de Rede supera os outros modelos de negócio em diversos pontos. Para descobrir isso, eles testaram os modelos de negócio usando dados das empresas que compõem o S&P 500, partindo de 1972 até 2014 (data da escrita da análise), para ver qual dos quatro modelos de negócio performaram melhor neste tempo. Foram vários fatores analisados:

  • Como a empresa se descreve nos reports anuais;
  • A receita gerada por diferentes unidades de negócio;
  • Alocação de capital;
  • Percepções do mercado, incluindo novos artigos e reportes de analistas;

Além disso, para as empresas que se encaixam em mais de um modelo de negócio, eles classificaram a empresa no modelo que ela é predominante, por exemplo a Nike, que é classificada como uma Construtora de Ativos, embora tenha todo seu ecossistema digital Nike+.

Quando criamos uma plataforma, nós não precisamos ser donos do fluxo inteiro de geração de negócio e de valor. Essas empresas têm apenas a responsabilidade de orquestrar a rede. Enquanto isso, as outras empresas, que não teriam expertise de tecnologia e produtos para construir essa rede por si só, trabalham entregando e consumindo serviços da plataforma… Então, a troca é justa.

Pegue o exemplo da Airbnb, que, por não possuir nenhum hotel, não precisa perder tempo gerenciando imóveis. Nem a Uber, que, por não ter uma frota inteira de carros, não precisa se preocupar com depreciação, imposto, revenda. Essas empresas, embora possam ser tratadas como intermediárias no processo como um todo, se livraram do maior custo que as empresas tradicionais precisam lidar, ficando mais leves e usando a tecnologia para gerenciar o que realmente importa: o processo.

Ao delegar a propriedade do carro ou do imóvel para seus respectivos proprietários, transformando-os em um ponto de uma rede que se forma, as empresas podem se concentrar em focar suas energias em se posicionar no processo como uma plataforma fundamental para a geração de negócios e integração de pessoas com outras instituições e serviços. Assim como citei no capítulo onde falamos sobre Produto como Serviço, onde apresentei o conceito do Service-Dominant Logic.

É por isso que as empresas baseadas no modelo de plataforma, conseguem ter tempo para agregar mais valor ao serviço e para a rede que elas compõem, transformando-se em um elo importante, insubstituível, menos controlador, mas tendo em vista a busca do monopólio. Não é surpresa que todas as empresas buscam o monopólio para conseguirem liderar e controlar todo um mercado ou pelo menos uma parte significativa.

A Amazon é um ótimo exemplo sobre como usar toda a cadeia de valor para gerar caixa e por sua vez usar esse caixa para subsidiar ainda mais o crescimento da empresa.

Cadeia de Valor da Amazon para geração de caixa

Você encontra vários artigos na web explicando como a Amazon funciona. Basicamente e em resumo, tudo ser resumo ao fluxo de caixa operacional da empresa. A Amazon tem um crescimento exponencial que precisa ser mantido por meio de ciclo de reinvestimento, criando novos prédios de distribuição, investimento em tecnologia e maquinário, além de processos, pesquisa e inovação.

Abaixo segue explicação completíssima do artigo da HBR escrito pelo Justin Fox[4]. Esta é uma tradução livre:

A diferença entre as linhas de cima e a de baixo é principalmente sobre investimentos em construções, máquinas e outras coisas, que são registradas ao longo do tempo na demonstração de resultado, mas que são ignoradas no cálculo do fluxo de caixa operacional. O fluxo de caixa operacional é muito maior do que o lucro líquido de uma empresa que investe grandes quantias de dinheiro, pois ela se esforça para dominar o varejo global, embora o tamanho da diferença e a forte trajetória ascendente da linha de fluxo de caixa, ainda é impressionante. (https://hbr.org/2014/10/at-amazon-its-all-about-cash-flow)

Empresas como WhatsApp, Airbnb, Uber e Alibaba foram negociadas e vendidas por valores estratosféricos que significavam muitas vezes maior que a sua receita. O Dropbox, por exemplo, recebeu algo em torno de USD$ 10 bilhões, o que significa umas 40 vezes a receita que ele faturava na época. O Airbnb teve um valuation de USD$ 10 bilhões também, significando 20 vezes sua receita na época. Uber teve seu valuation beirando os USD$ 30 bilhões, que foi estimado ser 15 vezes sua receita.

Sim, estamos e estávamos vivendo uma bolha gigante de startups (vide os casos do WeWork e Uber depois dos investimentos estratosféricos da SoftBank), mas o valor dessas empresas não estão exatamente na tecnologia que elas criam, mas no potencial de crescimento e fluxo de pessoas que elas alavancam.

O que é e como funciona uma plataforma

A proposta do S-D Logic é ter uma visão centrada em serviços, que faz com que as empresas procurem relações de aprendizado não apenas com o cliente, mas com outros parceiros que possam trazer algum tipo de conhecimento ou skills para a rede como um todo, gerando mais valor para a cadeia e consequentemente para o cliente.

Isso quer dizer que seu produto precisa trabalhar integrando lados de uma rede, de forma que não seu produto diretamente, mas todos envolvidos na rede, inclusive o Cliente, gerem valor.

A visão centrada em serviços faz com que as empresas procurem relações de aprendizado não apenas com o cliente, mas com outros parceiros

Quero permissão para errar aqui. Fiz esse diagrama totalmente na orelhada, tendo uma visão de alguém totalmente por fora do negócio. Mas como exemplo, ele vai funcionar muito bem.

Perceba que os players da rede usam o Spotify como um meio de fazer interface com os outros players. O Spotify não tem controle sobre os usuários, não tem controle sobre as gravadoras, não pode controlar também os artistas, contudo, todos esses players querem se integrar ao Spotify pois ele os ajuda a formarem uma rede complexa de entrega de valor contínuo. Essa é a plataforma que o Spotify criou, que não se resume apenas aos apps, mas a todo um ecossistema de integração.

Para um produto seguir escalável como uma plataforma:

  • Você não tem um produto, você tem um serviço;
  • O produto é um meio, não o fim. É uma forma do usuário ter acesso à solução dos seus problemas e necessidades, sejam eles de forma digital ou integrando com o mundo físico. Exemplos: Loggi ou Nubank;
  • O serviço precisa ser cocriado para ter seu valor aumentado pelo usuário e pelos vários players que compõem a plataforma, gerando sinergia entre as pontas. Efeito de rede e pensamento de plataforma;
  • O serviço precisa gerar oportunidades para que o usuário e os outros players que formam a rede de plataforma se beneficiem dessa rede;
  • Quanto mais "lados" seu serviço tiver, melhor. Quanto maior a rede, mais benefícios para os usuários e para todos os players envolvidos;
  • O cliente não é um target, mas um personagem ativo nas relações de troca de valor, além de ser um cocriador de valor.

Sangeet Paul Choudary, coautor do livro Plataforma: A Revolução da Estratégia (Editora Alta Books, 2019), escreveu um manifesto com pontos importantes sobre construção de plataforma e efeitos de rede[5]:

  • O ecossistema é o novo armazém;
  • O ecossistema é também a nova cadeia de suprimentos;
  • O efeito de rede é o novo direcional para escala;
  • Dados são o novo dólar;
  • Gestão de comunidades é o novo recursos humanos;
  • Gestão de liquidez é o novo controle de estoque;
  • Curadoria e repetição são os novos controle de qualidade;
  • Jornada do usuário é o novo funil de vendas;
  • Distribuição é o novo destino;
  • Desenho de comportamento é o novo programa de fidelidade;
  • Ciência de dados é o novo processo de otimização de negócios;
  • Otimização social é a nova comissão de vendas;
  • Algoritmos são os novos tomadores de decisão;
  • Personalização em tempo real é a nova pesquisa de mercado;
  • Plug-and-play (API) é o novo desenvolvimento de negócios;
  • A mão invisível é o novo punho de ferro;

É indiscutível que precisamos pensar muito mais em integração com parceiros do que tentar fazer algo solo, entregar valor contínuo do que tentar fazer planejamentos e projetos de longo prazo, colocar o usuário no processo do que usá-lo apenas em uma fase de ideação e brainstorming. Para isso funcionar, precisamos resolver um problema: por onde começamos?

O Ovo ou a Galinha

Mas para criar uma plataforma, você, como o centro da integração das pontas, precisa começar por algum lugar. Se você fosse criar o Uber, iria atrás de motoristas antes de usuários? Se você fosse criar o Airbnb, você começaria recrutando e selecionando proprietários com imóveis ou pessoas procurando lugares para ficar?

Esse é o famoso problema do Ovo ou a Galinha. Esse é um problema milenar e que o grande desafio é entender o que veio primeiro: o ovo ou a galinha. O Neil deGrasse Tyson diz que foi o ovo, vindo de uma ave que não era necessariamente uma galinha. Existem vários estudos que colocam isso em dúvida. Contudo, até que esse mistério seja resolvido, podemos usar o ditado “o ovo ou a galinha” para descrever acontecimentos que deveriam ser considerados causa e qual deveria ser considerado o efeito.

Quem veio primeiro?

Quando estamos construindo um produto com um ciclo de growth contínuo, uma das estratégias é aplicar regras e princípios de efeito de rede, resultando em um produto com características de plataforma. Neste caso, o desafio é criar massa crítica para as pontas da rede, para iniciar o ciclo virtuoso de quanto mais uma ponta da rede cresce, mais as outras pontas se fortalecem.

Basicamente todos os serviços que dependem de duas (ou mais) pontas e que usam seu produto como intermediário ou como uma plataforma, terão o problema do “ovo ou a galinha”. O que vem primeiro, motoristas ou usuários? Restaurantes ou clientes? Vendedores ou compradores? Como resolvemos isso?

Não existe uma receita básica que possa ser seguida por todas as empresas que desejam criar uma plataforma, pois os mercados e usuários são diferentes, sendo uma estratégia muito sensível e falha. No livro Plataforma: A revolução da estratégia, Geoffrey G. Parker diz que plataformas mal concebidas produz pouco ou nenhum valor para os usuários, gerando efeitos de rede fracos.

Posso citar quatro maneiras, nem tão fáceis assim, para conseguir resolver esse dilema:

  • Resolva o lado mais difícil primeiro. Quando você descobre o lado mais difícil de engrenar na rede, e faz esse lado chegar no seu momento de massa crítica, os lados mais fáceis crescerão de forma orgânica.
  • Invista/Pague para um dos lados estarem no seu produto. Inicialmente a Uber pagou para motoristas estarem no aplicativo, gerando um mínimo de demanda. O Huffington Post contratou escritores profissionais no seu lançamento, para que leitores se interessassem pelo conteúdo do site... eventualmente esses leitores começaram a contribuir com seus próprios posts e então a roda começou a girar. O Google fez isso também com o Android, pagando prêmios para os desenvolvedores criarem Apps para a plataforma. Com mais Apps, mais usuários interessados.
  • Crie valor primeiro para um dos lados. Se você se focar em gerar muito valor para primeiramente um dos lados. Depois que esse lado estiver já estabelecido e bem servido, atraia o outro lado que queira interagir com o primeiro. No início o MySpace deu profiles para bandas, que consequentemente trouxeram as visitas dos seus fãs para a plataforma. O Paypal também dava USD$10 para o usuário no ato do cadastro e depois mais USD$10 por indicação.
  • Automatize atividade para tracionar fluxo real. Essa não funciona para todos os serviços e ainda tem ponto de "ética" a se pensar. Exemplo: No início o Reddit usou usuários fake para postar perguntas e respostas para dar a impressão de que o site era popular. Ou a velha história do Paypal, que usou robôs para comprarem produtos no eBay, via Paypal, para gerar buzz de crescimento sobre a plataforma.
  • Conecte-se em outra plataforma que ajude a criar valor. Você pode conectar seu serviço em outra plataforma, já estabelecida, para mostrar o valor que seu serviço pode entregar. O Paypal fez isso ao fazer o sambarilove com o bot comprava produtos automaticamente e pagava usando Paypal para aproveitar a base de vendedores domésticos no eBay.

Aqui (e em outros lugares do mundo), depois de um determinado momento, o problema não é crescer um dos lados, mas manter essa massa crítica. Como PM você precisa virar mestre no desafio de como fazer os usuários se engajarem, gerando retenção, no seu mercado e no seu produto. Nesse caso, o comprometimento dos usuários se torna muito mais essencial que a aquisição. É comum os serviços tentarem engrenar isso dando descontos, cupons, cashback e outras estratégias. Quem nunca deixou um produto no carrinho um ou dois dias para receber aquele email de desconto? Basicamente as empresas (principalmente startups) queimam bastante dinheiro neste processo para conseguir ter um crescimento exponencial no início, ao mesmo tempo que tentam manter o interesse do usuário no produto, tentando gerar engajamento na entrega de valor e eventualmente gerando fidelização com o produto.

Tipos de Usuário

Todo início de jornada do usuário em um novo produto é uma jornada de descoberta sobre se aquele produto resolve mesmo seus problemas, se ele é confortável e prazeroso de usar. É aqui que você precisa entender qual o tempo do ciclo de engajamento e de retenção do seu produto. Essa fase de descoberta é importante para você transformar seu novo usuário em usuário frequente e depois em usuário fiel.

Basicamente, você pode dividir seus usuários em 3 categorias:

  • Core: usuários que usam seu produto com frequência e tem uma abrangência de uso muito ampla, ou seja, eles usam várias das funcionalidades do seu produto, além daquelas funcionalidades core, que são a identidade do seu produto;
  • Casual: usuários casuais são usuários que usam seu produto, não de forma muito frequente, mas tem seus apps instalados, reagem a notificações, ofertas e compartilhamentos de amigos.
  • Frios: usuários frios são aqueles que já usaram alguma vez seu produto, mas agora usam apenas em momentos muito específicos durante o ano ou dependendo da natureza do seu produto, precisam verificar alguma informação importante;
Fluxo da divisão das categorias de usuários: Core, casual e os frios

O que vai dizer quais dos seus usuários estão em cada categoria são os dados extraídos do seu produto. Os níveis de engajamento e retenção dos produtos mudam para cada mercado e perfil de uso. Enquanto um usuário core de um serviço de rede social é aquele que entra todos os dias e publica algo na rede, o usuário core de uma seguradora é aquele que entra uma ou duas vezes no ano por causa de um sinistro, mudança de plano ou renovação do contrato.

Relação entre engajamento e retenção

Com o tempo, você verá padrões no seu produto. Um usuário geralmente vai diretamente para a categoria core nos primeiros dias após o cadastro. Um usuário casual pode ser um usuário que usa o seu produto e usa também o do concorrente, se isso for verdade, você pode transformá-lo em core se você lançar uma funcionalidade que ele tanto esperava.

Como fazemos essa análise de migração de categoria? Uma forma que você pode usar em quase qualquer situação é a análise Cohort que falamos no capítulo sobre Métricas e Indicadores.

Uma plataforma é forte quando as pontas geram cada vez mais valor para as outras pontas da rede. Isso acontece quando você resolve o problema do Ovo e a Galinha, fazendo com que a demanda de uma das pontas aumente de forma que fica mais fácil conseguir engajar outras pontas da rede.

Nós fazemos isso estudando um assunto chamado Efeito de Rede.

Efeito de Rede

Mágica. Só podia ser mágica. Você escreve algo em uma folha de papel e depois coloca essa folha em uma máquina. Digita um número de telefone e aperta um botão. A máquina suga o papel e em outro lugar do planeta, outra pessoa pega o papel que sai de uma máquina similar à sua, com a mensagem que você escreveu. Tipo uma máquina de Xerox que teletransporta uma cópia da sua mensagem para outro lugar.

O Fax foi uma daquelas invenções que realmente encurtaram distâncias. A ideia inicial do Fax foi patenteada por Alexander Bain em 1843. Isso foi há mais de 177 anos.

Hoje o Fax não é mais usado e foi derrubado pelos meios que já conhecemos atualmente. Contudo, assim como o telefone, o Fax foi um símbolo de como o Efeito de Rede é essencial para todos os produtos, seja eles digitais ou físicos.

À primeira vista, esse assunto pode se juntar com tantos outros na categoria de “todo mundo já falou sobre isso”. Contudo, empresas de produtos aqui do Brasil não dão a devida importância para essa artimanha na construção de seus produtos. Já as empresas gringas têm seus negócios fundamentalmente estruturados e organizados levando em consideração os Efeitos de Rede.

O básico: o que é o efeito de rede?

Uma rede é um grupo de pontos conectados entre si. Seja uma rede formada por computadores ou pessoas, elas estão de alguma forma conectadas entre si, trocando informações, valores, sentimentos. Isso faz com que quanto mais pontos conectados, entregando valor entre si, mais valor a rede tem.

Uma rede existe por causa da conexão de dois ou mais pontos

Os pontos na rede são pessoas, negócios, sistemas, compradores, vendedores, robôs ou qualquer coisa que faça conexão com outros pontos. Cada nó tem uma responsabilidade e entrega um valor para a rede. Assim como já vimos no estudo sobre Service-Dominant Logic.

70% do valor criado em tecnologia desde 1994 tem sido dirigido pelos efeitos de rede. — NFX - https://www.nfx.com/post/70-percent-value-network-effects

Uma rede, obviamente, só pode ser feita com pelo menos dois pontos conectados. Não existe valor na rede se apenas você tivesse uma conta no Twitter ou se só você tivesse um aparelho de Fax. O tamanho da rede é mensurado pela quantidade total de pontos que ela tem.

Exemplo simples de plataforma/rede sobre como o Médium conecta Escritores e Leitores

O link é a conexão que um ponto faz com outro. Já que podem existir vários tipos de pontos com responsabilidades diferentes, o tipo de link (conexão) também varia. A conexão entre uma empresa e uma pessoa é diferente da conexão de uma empresa com outra ou com uma pessoa com outra, ou com um robô e uma pessoa.

Conexão positiva entre Escritores e Leitores

Como mandam as regras do efeito de rede (como veremos a seguir), o valor da rede cresce na razão do quadrado do número de usuários do sistema. Esses usuários, no caso de negócios e nos produtos digitais que formam uma plataforma, são os players que fazem parte da plataforma. Logo, a plataforma precisa ter um ciclo de entrega de valor contínua para que a rede fique mais valorosa.

Quero resgatar o exemplo que usamos do Spotify no início do capítulo, mostrando a plataforma que ele criara para integrar outros players, gerando valor para a rede.

Visão da plataforma formada pelo Spotify integrando outras empresas e atores


Agora, vamos ver como o efeito de rede se aplica nessa plataforma criada pelo Spotify. É aqui que toda aquela história de Service-Dominant Logic começa a se fundir com a ideia de construção de plataforma entregando valor contínuo com os princípios de efeitos de rede.

Troca de valor entre os atores da rede formada pelo o Spotify

Veja que os players (pontos/nós) que formam a plataforma/rede trocam valor entre si, fazendo com que cada uma dessas conexões aumente o valor da plataforma/rede como um todo.

É muito difícil você criar uma plataforma sem pensar em efeitos de rede, ou criar uma rede com seus efeitos positivos sem pensar em construir uma plataforma. Essencialmente estamos falando que uma plataforma é uma rede e vice-versa. Uma plataforma sem efeito de rede é uma plataforma crua, sem vida, que provavelmente não perdurará por não gerar valor contínuo para o usuário e também para os outros integrantes da rede.

Podemos criar uma plataforma/rede em vários formatos. Você já conhece os formatos mais comuns, porque provavelmente usa os serviços deles no seu dia a dia e talvez você até trabalhe em um produto que tem um formato de rede claro.

Os formatos de Redes

Existe uma série de formatos de efeito de rede. Todos eles envolvem diferentes pontas, criando diversas possibilidades de conexão. Quanto mais possibilidades de conexão, mais forte a rede se torna.

A mais comum é uma rede formada com duas pontas, onde unimos dois lados com interesses em comum, por exemplo, vendedores e compradores. Mas a empresa NfX (uma Venture Capital que investe em empresas que têm sua estratégia baseada em Efeito de Rede) explica que existem 13 formatos de Network Effect. Esses 13 formatos são divididos em 5 categorias:

  • Direta;
  • Dois lados;
  • Dados;
  • Tecnológica;
  • Social.

Os 13 formatos (até o dia da escrita deste capítulo) são:

  • Físico. Quando os Efeitos de Rede são formados por pontos físicos ou conexões físicas (internet com fibra, exemplo). Exemplo: linhas telefônicas;
  • Protocolo. Quando um padrão de protocolo de comunicação ou transferência surge e todas as pontas da rede usam esse protocolo. Exemplo: Bitcoin, Ethernet, BitTorrent;
  • Utilidade Pessoal. Quando uma rede é usada para se comunicar e interagir na vida pessoal, logo, se você não fizer parte dessa rede, você perderá oportunidades de conversar com família, amigos, próximos. Ex: WhatsApp, Telegram, ICQ;
  • Pessoal. Quando a sua reputação e identidade está atrelada ao serviço/produto. Se pessoas que você conhece na vida real, estão usando um produto para guardar suas informações pessoas ou até reputação, você se sente impelido a usar também. Ex: Facebook, LinkedIn;
  • Market Network. Quando combinamos a identidade e aspectos de comunicação pessoal com foco em transações, trazendo profissionais ou serviços do offline para online. Ex: GetNinjas, HoneyBook, AngelList;
  • Marketplace. Quando há dois lados que se complementam: vendedores e compradores, escritores e leitores. É o efeito de rede básico de dois lados. Ex: Medium, Google, Mercado Livre, Magazine Luiza, Amazon;
  • Plataforma de Tecnologia. Muito parecido com o Marketplace, por se tratar de uma rede de dois lados, mas aqui é mais para o lado de tecnologia. Quando há uma plataforma que liga os usuários com os desenvolvedores, gerando valor nessa rede. Ex: Nintendo, Android, Windows, iOS;
  • Mercados assintóticos. Quão rápido o valor da demanda aumenta conforme o lado do fornecedor aumenta e quão forte o efeito de rede fica quando a massa crítica chega no máximo. Ex: Uber, 99;
  • Dados. Quando o produto aumenta o valor da rede conforme o volume de dados aumenta e os usuários se beneficiam disso. Bancos poderiam usar isso como estratégia. Ex: IMDB, Google, Waze, Yelp!;
  • Performance Tecnologia. Quando a performance do produto está diretamente relacionada com o número de usuários. Mais dispositivos, mais usuários, melhor a rede de tecnologia trabalha. Ex: Bittorrent;
  • Linguagem. Quanto mais as pessoas usam esse serviço, mais comum ela fica no jargão de comunicação entre as pessoas. Em qualquer lugar comunicação com outras pessoas, o idioma é um intermediário importante. Ex: Google;
  • Crenças. Quanto mais pessoas acreditam numa coisa, mais a rede ganha valor. O dinheiro é assim. Ele não teria valor nenhum se as pessoas perdessem a crença de que ele pode comprar coisas. Ex: Moedas ou religiões;
  • Bandwagon. Quando uma pessoa se sente pressionada para entrar na rede, porque todos estão lá, ou tem, ou usam, mas ela não. Ex: Slack, Apple;

As Leis de Metcalfe e Reeds

O conceito de Efeito de Rede ficou bastante popularizado quando Robert Metcalfe apresentou sua teoria onde ele define que o valor de uma rede de comunicação cresce em proporção ao quadrado do número de usuários na rede. A fórmula é: N² (N ao quadrado), onde N é o número de pontos (nós) na rede.

Exemplificação sobre a rede formada por telefone e suas conexões

Dois telefones só podem fazer uma conexão entre si. Já 5 telefones podem fazer 10 conexões. Mas 12 telefones fazem 66 conexões. Isso quer dizer que quanto mais pontas conectadas entre si, mais valor temos na rede.

Acontece que a Lei de Metcalfe foi originalmente aplicada pensando no sistema Ethernet de rede, ou seja, uma rede de computadores. Logo, a lei do Metcalfe pressupõe apenas redes formadas por computadores, não por pessoas ou instituições, por isso, o David Reed sugeriu mudança mínima, mas com grande impacto na lei fórmula sugerida pelo Metcalfe.

Em 1999, David P. Reed do MIT sugeriu uma derivação da fórmula de Metcalfe para prever formações de grupos na rede. A fórmula que antes era N² (N ao quadrado) agora ficou 2ᴺ (2 elevado a N), onde N é o número dos pontos da rede. Aqui sim podemos aplicar essa regra em cenários mais atuais, incluindo comunidades formadas no mundo digital.

Quando uma grande rede se forma, é quase que inevitável que as pontas formem grupos de acordo com as suas características comuns. Quando esses grupos se formam, eles potencializam o crescimento da rede, aumentando o seu valor. O motivo é simples: integrantes desses grupos se comunicam melhor entre si. Motoqueiros indicam o app de delivery para outros motoqueiros. Usuários indicam para outros usuários. As duas pontas começam a crescer, aumentando simultaneamente as conexões do grupo, gerando mais conexões entre todas as pontas e consequentemente aumentando o valor da rede.

Massa crítica da rede

O termo Massa Crítica é bastante usado na física e na química para se referir ao momento onde uma reação em cadeia é auto-sustentável, não sendo necessário adicionar ou remover qualquer tipo de material ou recurso para que a reação continue ocorrendo.

Esse termo também é usado ao estudar dinâmicas sociais, onde a massa crítica é a quantidade necessária de pessoas para provocar uma mudança profunda de direção ou adoção de uma nova ideia na sociedade ou em uma comunidade[6], que tenha tração suficiente para que seja autossustentável com crescimento progressivo.

Alcançar a Massa Crítica em Produtos Digitais tem o mesmo objetivo: encontrar a quantidade de usuários necessária executando uma determinada jornada no seu produto para que o crescimento seja autossustentável e rentável durante um grande período.

É muito difícil conseguir isso, vide produtos como o Google Plus. Mais pessoas saíam antes de gerar ou enxergar valor no produto. Logo, quando novas pessoas chegavam, ficava cada vez mais difícil enxergar o valor, dado que as pessoas que usaram antes o produto não deixaram muita coisa para empolgar as próximas.

Alcançar a massa crítica tem muito a ver com produtos que tenham um motivo para ou tenham funcionalidades que:

  • Gerem compartilhamento dos usuários que já estão no produto para pessoas que ainda não são usuários;
  • Transformem o uso do produto em hábito, de forma que o usuário queira usar o produto diversas vezes ao dia para executar novamente as jornadas que gerem ciclo virtuoso;
  • O usuário sinta que tenha mais a perder deixando de usar o produto e que tenha menos trabalho para manter seu perfil se continuar usando. Exemplo: Google Photos;
  • Usuários tenham pouco ou nenhum trabalho para alcançar os resultados esperados ao ser usuário do produto;

Em um momento de growth, é importante que o produto tenha funcionalidades que façam a massa de usuários crescer, e outras funcionalidades que façam esses usuários engajarem. Entender qual a motivação de uso do produto é essencial para que no momento de growth os usuários percebam valor muito rápido e passem a indicar para os outros. Isso quer dizer que, em muitos casos, você deverá abrir mão de ideias e soluções que o time e você julguem mais importantes para o produto, mas que não ajudam a crescer a base engajada de usuários.

Efeito de Rede em produtos digitais

O que o Waze e o Moovit têm em comum? Além de serem de Israel, eles são produtos que cresceram naturalmente por conta dos seus ciclos virtuosos.

É óbvio que vários produtos e negócios surgem da criatividade do empreendedor querendo suprir uma necessidade ou resolver um problema. Mesmo assim, se você já tem um produto ou se você está na fase de planejamento de um, é importante identificar como seu produto cria uma rede e quais são os seus efeitos, além dos valores que todas as conexões trarão para rede.

Um ponto importante é que o valor não vem apenas de novos usuários, mas também de outros personagens que podem ser incluídos na rede. Neste caso, você amplifica o valor da rede não apenas os usuários finais, distribuindo esse valor entre todas as pontas que sustentam a rede.

O Uber[7] é o case mais emblemático quando falamos sobre Efeitos de Rede em Produtos Digitais:

Ciclo virtuoso do Uber. David Sacks mostrou neste tweet como funciona o ciclo virtuoso do Uber. https://twitter.com/DavidSacks/status/475073311383105536

Esse é um exemplo básico de efeito de rede do Twitter:

Exemplo de efeito de rede do Twitter

O efeito de rede de empresas como o Mercado Livre podem ser visualizadas mais ou menos assim:

Exemplo que fiz para mostrar o efeito de rede do Mercado Livre

Algumas características essenciais do efeito de rede em produtos digitais:

  • É tudo sobre geração de engajamento e retenção objetivando o aumento da rede;
  • Ajudar a empresa a obter monopólio sobre o mercado específico, aumentando a defesa do serviço enquanto a rede aumenta de valor;
  • Quanto mais pessoas/empresas fazem parte da rede, mais valor é gerado. Quanto mais valor é gerado, mais pessoas/empresas formam a rede;
  • Quanto mais a viralização do serviço aumenta, o custo de aquisição diminui, mais perto da massa crítica o serviço chega;
  • Quanto mais as pessoas transformam o uso do serviço como um hábito, mais engajamento é gerado, resultando em mais retenção, diminuindo o churn;

Ciclo virtuoso aplicado em funcionalidades do Produto

Embora tenhamos visto o Efeito de Rede sendo aplicado na estratégia macro de crescimento do produto, os mesmos princípios podem ser aplicados para criarmos um ciclo virtuoso no uso das funcionalidades do produto com o objetivo de aumentar o engajamento dos usuários.

O objetivo é encontrar formas para estimular o uso do produto de forma continuada, com o mínimo de fricção e que alimentem o objetivo principal do produto.

O Ciclo Virtuoso é aplicado na granulosidade das funcionalidades que o usuário usa diretamente, objetivando um resultado/outcome claro para alcançar.

Vamos tentar materializar: imagine que você seja o PM de um serviço de streaming de música. O outcome que precisa ser alcançado naquele período é aumentar a quantidade de músicas tocadas nas plataformas em x%. Logo, você precisa encontrar maneiras de estimular as pessoas a ouvirem mais músicas no seu serviço.

Pensando nisso, você fez uma série de pesquisas qualitativas por meio de entrevistas e também análises quantitativas com os dados gerados pelos comportamentos dos usuários no produto. Você e seu time descobriram que as pessoas passam bastante tempo procurando músicas que:

  • Tenham um significado emocional, ou seja, que as façam lembrar de coisas importantes que aconteceram na sua vida;
  • Ajude a executar uma tarefa do dia a dia, seja em tarefas de casa, estudo, trabalho etc.

A hipótese é: se ajudarmos as pessoas a encontrarem músicas com mais velocidade e facilidade que se encaixem nessas duas características, elas ouvirão mais músicas.

Algumas ideias:

  • Possibilitar que os usuários criem playlists;
  • Melhorar algoritmo de recomendação;
  • Possibilitar que os usuários criem playlists colaborativas;
  • Oferecer playlists temáticas prontas;
  • Possibilitar que os usuários compartilhem músicas;
  • Possibilitar que os usuários favoritem músicas prediletas;

Vamos pegar a criação de playlists como início?

Exemplificação do ciclo virtuoso aplicado às funcionalidades de produtos digitais

Se o usuário cria playlists com as músicas que ele mais gosta, mais músicas ele ouvirá, pois você facilitou o acesso às suas músicas favoritas.

Mas podemos aumentar esse ciclo. Conforme o usuário seleciona as músicas que ele mais gosta, o algoritmo de recomendação fica mais esperto, pois conforme o usuário seleciona as músicas, ele já deu as pistas sobre quais estilos de música ele mais gosta, quais o artista prediletos, quais os temas etc.

Segunda fase do ciclo

Se adicionarmos a funcionalidade de favoritar músicas, podemos ter mais um gancho para aumentar a inteligência das recomendações. Coloquei mais uma seta iniciando das músicas tocadas, que também tem o potencial para alimentar o algoritmo com mais dados de comportamento.

Terceiro nível do ciclo

Podemos adicionar agora a funcionalidade de playlists compartilhadas. Neste caso, ter a possibilidade de playlists compartilhadas, faz com que o usuário ouça mais músicas, já que seus amigos (e até desconhecidos) podem colaborar colocando músicas na playlist. Além disso, ter essa funcionalidade ajuda a aumentar a quantidade de playlists no serviço, que começa outro efeito de rede.

Efeito de rede baseada em funcionalidade

Usando o Twitter como exemplo, suponha que o outcome seja ampliar a quantidade de pessoas que publicam conteúdo na plataforma. A hipótese é que se mais pessoas leem os tweets, aumentamos as chances dos publicadores ganharem mais seguidores. Com mais pessoas engajando mais nas publicações, os quem escreve se sente mais motivado para publicar novos conteúdos.

Exemplo de efeito de rede aplicado às funcionalidades do Twitter

Há também a possibilidade de ter um efeito de rede negativo. Conforme a quantidade de escritores aumenta, existe o risco de ter mais conteúdo não relevante ou conteúdos que estimulam comportamentos negativos de usuários (racismo, preconceito ou qualquer tipo de ataque individual que possa gerar violência virtual).

Um pergunta que você pode fazer olhando todos esses ciclos é: "Onde está o começo?". Mas essa é a graça de um ciclo virtuoso: ele é cíclico. Não importa onde começa, o impacto é na rede inteira. Assim como falamos, cada ação deve impactar a geração de valor, sendo sentida pela rede inteira.

Poucas pessoas estão usando o produto, e aí?

É normal que na fase de growth, existam alguns momentos onde a tração do crescimento de usuários demore para aparecer. Geralmente, quando temos o problema do Ovo ou a Galinha, que é normal quando falamos sobre produtos como plataforma, você decida primeiro aumentar a ponta dos usuários do produto antes de incentivar as outras pontas. Se você conseguir uma massa crítica de usuários interessados no seu produto, você pode seduzir mais facilmente as outras pontas da rede a entrarem no grupo.

Além das já citadas neste capítulo, existem algumas estratégias que podem facilitar a tração do produto.

Boca a Boca

Hoje o boca a boca não é só um amigo falando para outro sobre a última coisa fantástica que ele descobriu. A relação agora é de um para muitos. As redes sociais funcionam como um megafone. Os nossos usuários precisam falar frases como: "Cara, usa aquele serviço, é tão melhor." para seus amigos ou pessoas próximas. Seja pessoal, seja por meio de redes sociais ou por outros canais.

Muito por isso, o trabalho dos influencers têm crescido bastante. Nem é muito por conta da amizade, neste caso, mas o público do influencer confia nos conselhos e indicações que recebem, por isso, o boca a boca toma uma proporção viral maior. Nesse modelo, é importante garantir que o produto seja fácil de encontrar e tenha um nome ou slogan bastante fácil de reconhecer.

Algumas empresas potencializam o boca a boca oferecendo cupons, ofertas, gamification ou qualquer outro tipo de incentivo. Eu ganhei muitos gigas de armazenamento no Dropbox indicando o serviço para meus familiares e nas redes sociais. Hoje, com a nova fase dos unicórnios e investimentos bilionários, é comum ver startups queimando dinheiro para conseguir potencializar o rápido crescimento de um dos lados da rede, geralmente dando incentivos para os usuários. Quantas vezes você recebeu do iFood aqueles R$20 marotos para um jantar ou créditos para entregas na faixa pelo Rappi?

Demonstração

Eu me lembro quando o Uber começou a engrenar aqui no Brasil. Eles começaram a operar apenas com a categoria Uber Black. Em vez de pegar um Táxi que usava um carro "comum", as pessoas se gabavam de chegar aos lugares com um carro preto mais "premium". O slogan "Todos têm um motorista particular" ajudou muito neste processo. Depois disso tudo, era evidente que as pessoas pegam o Uber exatamente para demonstrar que estavam usando algo que ainda ninguém tinha acesso e que era algo mais "chique" do que pegar um simples Táxi comum.

Aqui, a estratégia é simples: impressionar outras pessoas simplesmente usando o produto. O Instagram viralizou por causa dos filtros nas fotos, ou com os vídeos do antigo Musical.ly (hoje TikTok).

O modelo de demonstração funciona muito melhor quando o serviço é muito útil no dia a dia das pessoas ou quando o app faz algo que nenhum outro fazia anteriormente, como o Instagram com filtros, Musical.ly com os clipes de música.

Convite

Ter curiosidade para saber como é aquele serviço misterioso que só o seu amigo tem acesso gera expectativa, que gera ansiedade. As pessoas ficam com o sentimento de que estão ficando fora de alguma coisa. Saber que não faz parte de um grupo seleto mexe com uma parte sensível do ser humano.

Muito do sucesso da Nubank veio por causa da geração dessa restrição. A proposta de valor de ter um cartão de crédito esperto, sem anuidade, que realmente se importava com as pessoas e seus problemas financeiros, foi bastante potencializada quando todas essas vantagens não eram destinadas para "qualquer um". Você tinha que ter um convite para avançar na fila. Você precisava ser convidado por um privilegiado que já estivesse no clube para.

Isso aconteceu lá atrás com o Gmail. Quando o Gmail nasceu, por meio de convites, todo mundo tinha curiosidade de saber como funcionava esse novo produto do Google que prometia revolucionar a forma com que lidávamos com nossos emails. A proposta não era nem o design, que já era horrível desde aquela época, mas todos os outros problemas que ele resolvia com um "problema comum", que era o email. Filtro de spam, o uso de labels, busca esperta, atalhos e principalmente o "Ajax" (que possibilitava ler emails sem fazer refresh na página) eram as funcionalidades que fizeram o Gmail se destacar e gerar burburinho primeiro nos geeks e depois no público em geral. Quem não gosta de ser convidado pelos seus amigos próximos para participar de um serviço exclusivo?

Contudo, há armadilhas aqui: os falsos convites podem ser um tiro no pé. Muitos produtos usam de artimanhas para induzir usuários a mandar convites para toda a sua lista de contatos. Muitas vezes os usuários fazem isso sem nem perceber. Essa prática causa um efeito contrário: em vez de criar expectativa e desejo, cria repulsa logo de início e ainda "queima" a reputação do usuário que convidou os amigos. Logo, esse usuário que antes era um hub de oportunidades se transforma em seu pior detrator, usando todos os seus canais para lutar contra em vez de a favor do seu produto.

Concluindo

Hoje parece muito óbvio entender que, no mundo digital, trabalhar como uma plataforma faz mais sentido do que no modelo linear, tradicional, muito comum no mundo offline. A mudança pode ser sutil: enquanto no modelo tradicional você trabalha com intermediários que centralizam o poder de viralização e controle de mercado, no outro, seu produto também trabalha como um intermediário, mas muito mais democrático, delegando o que não é especialidade do produto, mas ajudando os players especialistas a potencializarem seus resultados.

Mas a prática é mais difícil do que parece. Não há respostas prontas e você precisa descobrir uma série de perguntas para conseguir definir possíveis caminhos. Alguns desses caminhos podem ser decisivos para produtos virais e que trabalhem fundamentalmente como uma plataforma.

Os princípios de conhecer seu usuário e saber quem e como estão usando seu produto é essencial para decidir qual direção seguir. Seu produto é algo vivo, que evolui, não estagna (pelo menos não deveria) e por isso é necessário que o time mantenha um ciclo contínuo de Discovery, encontrando e direcionando problemas e oportunidades de produto. Veremos isso a seguir.


  1. https://newsroom.spotify.com/company-info/ ↩︎
  2. ANDERSON, Chris. The Long Tail. Wired , 2004. Disponível em: https://www.wired.com/2004/10/tail . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎
  3. LIBERT, Barry; WIND, Yoram (Jerry); BECK, Megan. What Airbnb, Uber, and Alibaba Have in Common. Harvard Business Review , 2014. Dispnível em: https://hbr.org/2014/11/what-airbnb-uber-and-alibaba-have-in-common . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎
  4. FOX, Justin. At Amazon, It’s All About Cash Flow. Harvard Business Review , 2014. Disponível em: https://hbr.org/2014/10/at-amazon-its-all-about-cash-flow . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎
  5. CHOUDARY, Sangeet P. The Platform Manifesto. Platform Revolution , c2022. Disponível em: http://platformed.info/the-platform-manifesto/ . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎
  6. BELL MK. Massa crítica - ponto crítico. YouTube , 19 fev. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=euk4Sj5Cx2w . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎
  7. ZIMMERMAN, Whitney. The Network Effects of Uber’s Master Plan. HackerNoon , 2016. Disponível em: https://tinyurl.com/uber-networkeffects . Acesso em 23 set. 2022. ↩︎