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Ética em produtos digitais

A revolução tecnológica impacta muitas áreas do conhecimento humano, incluindo a forma como criamos e consumimos produtos digitais. Precisamos discutir a ética em produtos digitais para lidar com questões como polarização, excesso de trabalho e disseminação de informações erradas.

Estamos vivendo um momento de transição em que muitas áreas do conhecimento humano são impactadas pela revolução tecnológica. Não é uma revolução linear, onde uma área é transformada após a outra, mas muitos mercados estão sendo, ao mesmo tempo, quebrados e reconstruídos.

O autor Rutger Bregman começa seu livro Utopia para Realistas (Editora Sextante, 2018) mostrando como o mundo melhorou em diversos sentidos nas últimas décadas. Embora ainda haja pessoas passando fome, mal nutridas, sem trabalho e sem uma casa para morar, de repente bilhões de pessoas se tornaram ricas, limpas, inteligentes, saudáveis e até mais bonitas.

Em 1820, 84% da população mundial vivia na faixa de extrema pobreza (extrema pobreza significa viver com menos de USD$1,90 por dia). Em 1981 essa porcentagem já tinha caído para 44% e atualmente está por volta de algo em torno de 10%. Aqui no Brasil, o número de brasileiros em situação de pobreza extrema subiu 11,2% entre 2016 e 2017, passando de 13,34 milhões para 14,83 milhões[1].

O Hans Rosling tem um vídeo maravilhoso que explica uma série de outros números e fatos importantes sobre o desenvolvimento humano, inclusive a queda da extrema pobreza no mundo inteiro[2].

Mas nem dá tempo para comemorar essa evolução ou entender como podemos continuar melhorando, pois já temos que lidar com outros assuntos mais complexos.

A revolução industrial modificou não apenas a forma com que criamos e produzimos produtos físicos, mas também como nós consumimos. Hoje, mais do que nunca, comemos e compramos coisas que não precisamos. O marketing gera desejos desnecessários e dezenas de síndromes são sentidas pois as pessoas sentem falta de coisas que elas nunca tiveram, porque se comparam com as outras tendo uma visão unilateral das redes sociais ou não conseguem viver o presente sem estar com um smartphone no bolso. A internet e a web dão acesso à informação para as massas, ajudando pessoas a mudarem seus comportamentos para melhor ou para pior. O consumo não controlado de informação - de todas as qualidades e gostos - ajuda a polarizar sociedades, direcionando grande parte das pessoas para bolhas digitais, aumentando o preconceito e ceifando o diálogo.

Além disso, nós simplesmente quebramos os limites do que é trabalho e vida pessoal. Seu cliente está no seu WhatsApp misturado com os grupos de família. Uma mesa fixa no trabalho pode não ser mais necessária, pois o trabalho remoto está virando realidade. Antes, com uma divisão clara de horários de trabalhos, ficava mais simples de controlar quando o trabalho acabava e a vida pessoal começava.

Em seu livro Sociedade do cansaço (Lisboa Relogio D’ Agua Editores, 2014), Byng-Chul Han diz que esse excesso de trabalho tem criado o que ele chama de sociedade do desempenho, onde o indivíduo se entrega ao trabalho exaustivo por conta própria, não por uma mão pesada da empresa, mas por não controlar seus próprios limites.

"Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado." Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço - Lisboa Relogio D’ Agua Editores

Desde a criação da Web há 31 anos atrás[3], temos uma sociedade mais conectada e informada, que presenciou a evolução sobre como nos comunicamos e expressamos nossa opinião, como nos relacionamos na nossa vida familiar e também nos negócios. Mas, obviamente, como todo bom ser humano, da mesma forma que usamos uma boa ferramenta para o bem, usamos também para o mal. É enorme a nossa capacidade de inventar maneiras de usar a web para iniciativas ruins.

No artigo da Wired Where Does the World Wide Web Go From Here?, o próprio Tim Berners-Lee destaca três principais fontes de disfunções que afetam a Web hoje[4]:

  • Intenções deliberadas e maliciosas como ataques por hackers patrocinados pelo Estado, comportamentos criminosos e assédio online;
  • Sistemas que criam incentivos perversos, sacrificando o valor do usuário, como modelos de receita baseados em anúncios, com recompensas comerciais a quem faz clickbait e disseminação viral de informações erradas[5];
  • Consequências negativas não intencionais, como tons de polarização e insulto, além de (falta de) qualidade de discursos online;

Tim Berners-Lee ainda diz que o primeiro ponto é basicamente impossível de ser erradicado completamente, mas há maneiras de criar leis e códigos de conduta que possam minimizar esse tipo de comportamento, assim como fazíamos quando todos estávamos totalmente offline. Para lidar com o segundo ponto, é necessário que sejam criadas - pelas pessoas (e o mercado) - novas formas para mitigar esse tipo de incentivo perverso. E o terceiro ponto exige um nível maior de pesquisa para melhorar modelos já existentes e até criar novos possíveis modelos.

Vários outros tipos de problemas que nunca lidamos antes já estão surgindo e causando polêmica. Veja o caso dos cientistas chineses que alegam que eles foram os primeiros a criarem o primeiro bebê modificado geneticamente[6]. Se antes as discussões mais polêmicas eram aborto e uso de células tronco, isso mudou para assuntos como a possibilidade de pais poderem "construir" seu bebê, escolhendo características físicas como cor do cabelo, cor dos olhos, o quão atlético ele será, se vai ter um cérebro mais potente e várias outras características[7].

Veja que são problemas sociais e não puramente de tecnologia. São problemas sobre como o Estado se relaciona com as pessoas. Como instituições e centralizadores de poder e de informação lidam com o mercado e com as pessoas. Além de tocar em pontos sensíveis sobre como as pessoas lidam com as outras e principalmente consigo mesmo.

Hoje a tecnologia expõe a natureza humana como nada antes na história. Estamos lidando com novas situações que ninguém sabe qual é a resposta correta - se é que existe uma. É preciso entender que a tecnologia está ultrapassando limites que são difíceis de identificar se quebram o status-quo do certo e lícito e do errado e ilícito.

O que é ética

Sendo bem simplista: ética é um sistema ou um conjunto de princípios morais, que afetam como as pessoas e as sociedades dirigem e controlam suas vidas e decisões. É o que dita a conduta moral que baliza as pessoas sobre o que é certo e errado. Ela tem a ver com costumes e ações da sociedade e das pessoas. Ter uma conduta antiética, por exemplo, seria quando alguém tem uma ação considerada desonesta, incorreta ou inadequada para uma pessoa, uma profissão ou empresas. Você já deve ter ouvido falar sobre Ética Médica, por exemplo.

Ética é uma dessas coisas que todo mundo conhece, mas não sabe explicar. Isso porque a Ética muda bastante dependendo da época, do povo e da cultura. É até difícil de categorizar a ética dentro de uma área de conhecimento específica.

A ética também nunca anda sozinha. Os problemas éticos sempre envolvem outras dimensões da vida que afetam o comportamento humano. No livro O que é ética do autor Álvaro L. M. Valls (Editora Brasiliense, 2017), dá vários exemplos sobre isso:

  • Subornar um funcionário é um problema apenas ético, apenas econômico ou tem os dois aspectos?
  • Em épocas difíceis, leis injustas de um Estado autoritário ainda assim devem ser obedecidas?
  • O poder de sedução e de encantamento da música pode (ou deve) ser usado para condicionar o comportamento das pessoas?

São exemplos que se lidos sem uma análise mais demorada, podem até parecer banais, mas que se forem desdobrados para os nossos comportamentos do dia a dia, podem significar uma grande diferença de impacto que a ética (ou a falta de) tem na vida das pessoas.

Além disso, fica difícil tentar encaixar a ética em uma caixa fechada pois ela muda. Na idade média, por exemplo, existia a ética dos cavaleiros, dos Reis, Príncipes e assim por diante. Esses códigos de ética viviam de forma paralela e deviam ser respeitados de acordo com a hierarquia de cada pessoa. Obviamente, atualmente, há um consenso maior sobre o que forma um “pacote padrão” de conduta ética.

Algumas esferas que a ética envolve são:

  • Direitos e responsabilidades como indivíduos e sociedade;
  • Noção de definição do que é certo e errado, do que é lícito e ilícito;
  • Decisões morais sobre o que é bom ou ruim;

Sua moral pode ser avaliada por seus padrões de comportamentos. Esses padrões são definidos pela sua conduta ética, que é definida por seus princípios. Sua capacidade de julgar, executar e identificar o que é certo e errado vem da sua conduta ética. Os princípios são a plataforma que fundamentam seus valores pessoais e padrões éticos. Uma sociedade ou uma empresa definem seus princípios, que por sua vez definem suas decisões futuras. Suas decisões futuras são executadas por atos pautados pela sua conduta ética.

A ética não pode ser apenas uma questão abstrata ou teórica, mas uma questão prática. Se não há a prática da ética, ela não existe. É na prática que impactamos realmente a sociedade com nossa conduta, nossa forma de agir e de decidir fazer o certo e entender o que é o errado.

Produtos Digitais e Ética

Se uma instituição ou qualquer iniciativa, privada ou não, influencia as decisões que indivíduos, outras instituições e também a sociedade sobre seus padrões de comportamentos, existe uma responsabilidade ética envolvida.

Os Produtos Digitais que construímos podem influenciar as pessoas e instituições a tomarem decisões certas ou erradas, lícitas ou ilícitas. Nossos produtos podem influenciar políticas públicas ou criam debates que influenciam a vida habitual das pessoas, impactando seu modo de viver, trabalhar e se relacionar.

Quando criamos um meio pelo qual as pessoas interagem, elas nos dão seu tempo de atenção para que possamos ajudá-las a resolver um problema específico, a sanar um desejo ou uma necessidade. Por isso é importante que o PM e o time responsável pelo Produto tenham em mente não apenas a proposta de valor do produto e da empresa, mas também os princípios éticos de conduta que fundamentam as decisões tomadas pelo board, diretoria, stakeholders e os outros times da empresa.

Suponha que você é PM de um aplicativo de GPS que tem um viés muito forte de relacionamento social, ou seja, os usuários podem compartilhar informações essenciais sobre o trânsito. Tendo uma quantidade grande de usuários ativos, o serviço consegue ter uma cobertura enorme das vias e o status do trânsito em tempo real, onde os usuários podem compartilhar as razões que afetam negativamente o trânsito.

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