Jonas Downey, designer do Figma (ex-Basecamp), fez um exercício simples no artigo dele "The Unnecessary Fragmentation of Design Jobs": abriu um site de vagas e coletou os títulos que apareceram em 10 minutos. UX Designer, UX/UI Designer, UI Designer, Graphic Designer (UX & UI focus), Visual Designer, Digital Designer, Product Designer, Presentation Designer, Front End Designer, Web Designer.
Daí, as coisas começam a degringolar: que diferença isso faz entre um "UX/UI Designer" e um "Product Designer"? E o que diabos é um "Graphic Designer with UX & UI Focus"? A galera tão confusa que nem sabe mais o que é o quê. Downey contou que conhece designers que foram contratados para cargos de UX e, no primeiro dia, o chefe perguntou: "Afinal, o que é UX mesmo?"
Mas o problema vai além da confusão de nomenclaturas. A gente quebrou uma disciplina que sempre foi holística em pedacinhos tão pequenos que perdeu o sentido original. E isso não acontece por acaso — tem uma lógica perversa por trás.
Como chegamos nessa bagunça toda
A história dessa fragmentação não começou ontem. Durante anos, o design foi uma disciplina generalista por natureza. Você pegava um problema, entendia o contexto, pensava numa solução e executava. Forma e função caminhavam juntas, porque era impossível separar uma da outra sem quebrar o resultado final.
Aí veio a explosão das empresas de tecnologia. Todo mundo precisava de designer, mas ninguém entendia direito o que essa galera fazia. E quando você não entende uma profissão, a tendência é quebrar ela em pedaços menores até que cada pedacinho faça sentido isoladamente.
Foi assim que nasceu a separação entre UX e UI. Como Felipe Memória comentou no Podcast Movimento UX, houve um momento que, por algum motivo, o mercado quebrou a disciplina do designer em duas funções: designer visual e designer de experiência. Mas essa separação criou um problema que não existia antes.
O Felipe tem uma visão que faz muito sentido: lá na Work & Co não existe o cargo de UX, mas todos são Designers. Exatamente porque Designer é uma disciplina que não vai morrer daqui 5, 10, 100 anos. O termo UX pode morrer daqui um tempo, assim como os nomes Web Designer e Arquiteto de Informação morreram dando lugar para outros termos da moda.
O problema não é só nomenclatura
A questão vai muito além de confusão entre nomes. Quando você separa função de forma, você cria uma dinâmica artificial que prejudica o resultado final. É como ter alguém que projeta apenas o motor do carro e outro que só desenha a carroceria. Os dois podem ser excelentes no que fazem, mas o carro final vai ser uma droga.
Pense nisso: é uma boa prática trabalhar função e forma separadamente? Um bom design precisa ser bonito e funcional ao mesmo tempo. É estranho ter alguém que pensa na função primeiro para depois uma outra pessoa pensar na forma. Quem vai equilibrar essas duas necessidades? Quem vai tomar as decisões de trade-off quando elas entrarem em conflito?
A resposta deveria ser óbvia: alguém que entenda das duas coisas. Alguém que tenha o bom senso aguçado e que consiga pesar a importância da função e da forma nos momentos certos. Esse alguém é o que sempre chamamos de Designer.
A falácia da experiência do usuário
Outro problema grave dessa fragmentação é como ela distorce o conceito de responsabilidade. O nome "UX" dá a entender que a experiência do usuário é responsabilidade de apenas um profissional, o que é uma grande bobeira.
A experiência do usuário é resultado de tudo: desde como o produto é descoberto, passando pela interface, chegando até o atendimento ao cliente e a cobrança. UX não é uma função, é um resultado. É como dizer que existe um profissional responsável pela "satisfação do cliente" - não faz sentido, porque todo mundo na empresa impacta isso.
Essa confusão conceitual criou uma distorção no mercado. Empresas contratam "UXers" achando que resolveram o problema de experiência do usuário, quando na verdade só criaram mais um silo organizacional.
Por que isso não acontece em outras áreas
Aqui fica interessante: essa fragmentação extrema não acontece em outras áreas onde designers atuam. Pega o design de produtos industriais como exemplo. Quando alguém vai projetar uma cadeira, uma bicicleta ou um eletrodoméstico, o designer precisa dominar tudo: ergonomia, materiais, processos de fabricação, estética, funcionalidade, custo de produção e viabilidade técnica.
Ninguém separa o trabalho em "Industrial UX Designer" (responsável pelo conforto e usabilidade) e "Industrial Visual Designer" (responsável pela aparência). Seria absurdo. O designer industrial precisa equilibrar todas essas variáveis simultaneamente, porque elas são interdependentes. A escolha do material impacta tanto na estética quanto na ergonomia. A funcionalidade define tanto a forma quanto a experiência de uso.
Imagina só se a indústria automobilística adotasse nossa lógica: "Esse designer vai cuidar só da experiência de dirigir, aquele outro só da aparência do carro, e tem um terceiro que faz só pesquisa com motoristas". O resultado seria uma bagunça completa, porque as decisões de cada um impactam diretamente no trabalho dos outros.
No design industrial, quando o profissional vai criar uma nova linha de produtos, ele precisa pesquisar com usuários, entender limitações técnicas, projetar a forma, escolher materiais, pensar na produção e garantir que o resultado final seja bonito, funcional e viável. Tudo isso é trabalho do designer de produto. Não existe essa de "ah, mas pesquisa não é minha área" ou "isso é trabalho do pessoal de visual".
Então por que no design de produtos digitais a gente aceitou essa fragmentação como normal?
A indústria que criamos: o teatro do design
Parte da resposta está na velocidade com que o mercado digital cresceu. Empresas precisavam contratar rápido, e era mais fácil explicar para o RH que eles precisavam de "alguém para fazer wireframes" do que explicar que precisavam de "alguém que entende de design holístico para produtos digitais".
Mas tem outro fator: a gente criou uma indústria em volta dessa fragmentação. Cursos específicos de UX, certificações em UX Research, especializações em Design Systems. Cada nova subdivisão gera novos mercados de educação e consultoria.
E não parou por aí. Hoje temos UX Researcher (que "só" faz pesquisa), Designer Estratégico (que pensa na estratégia), Content Designer (que cuida dos textos), Service Designer (que mapeia jornadas) e por aí vai. Cada função nova que surge precisa justificar sua existência criando uma fronteira artificial com as outras.
O UX Researcher, por exemplo, virou uma função que pega todas as atividades de pesquisa que qualquer designer sempre fez - entrevistas com usuários, testes de usabilidade, análise de comportamento - e transformou numa especialização isolada. Agora você tem um profissional que "só" faz pesquisa e repassa os resultados para outros que "só" fazem wireframes ou "só" fazem layouts.
É o mesmo fenômeno que Dave Thomas observou sobre Agile: virou uma indústria. Não é mais uma cultura, é um modelo de negócio. E quando algo vira modelo de negócio, o incentivo é multiplicar as especializações, não simplificar.
Essa fragmentação criou algo que o Jonas Downey chama de "Designer Hot Potato" - um jogo onde cada especialista joga a responsabilidade para o próximo:
"Bob é bom em pesquisa, então ele fica com UX. Vai fazer umas personas e colar post-its na parede. Aí a gente se reúne, olha os post-its, move eles de lugar. Depois escrevemos ideias e pedimos para a Natalie fazer wireframes. Ela é nossa UX/UI. Aí ela passa para a Beth, nossa UI designer, que transforma wireframes em mockups de alta fidelidade."
Parece familiar? É um teatro onde todo mundo tem um papel muito específico, mas ninguém se responsabiliza pelo resultado final. E quando o produto não funciona, sempre tem alguém para culpar na cadeia.
O perfil-T funciona aqui também
Não estou dizendo que uma pessoa precisa resolver todos os problemas do mundo sozinha. Mas acredito muito no Perfil-T, não apenas para desenvolvedores, mas principalmente para designers.
Você pode ter um designer que tem facilidade maior para lidar com usuários, outro com capacidade acima da média para estruturar arquitetura da informação, outro com skills avançadas no desenho de interface. Aceitar e respeitar a especialidade de cada profissional é importante para montar times que se complementem.
Mas - e esse é um "mas" grande - todos eles deveriam ter uma base sólida comum. Todos deveriam entender tanto de função quanto de forma. Todos deveriam saber fazer pesquisa básica, criar wireframes quando necessário e também pensar na beleza da interface.
A especialização deveria ser uma camada adicional, não uma limitação. Um designer com foco em research deveria saber fazer uma interface decente. Um designer com foco em visual deveria saber conduzir uma entrevista com usuário.
O que estamos perdendo
Quando fragmentamos demais, perdemos algo essencial: a visão sistêmica. Design sempre foi sobre equilibrar restrições conflitantes e encontrar soluções elegantes para problemas complexos. Isso exige que uma pessoa (ou um time muito pequeno e alinhado) tenha controle sobre todo o processo.
"Na Work & Co, a gente coloca o time de design inteiro para pensar na única coisa que importa durante a maior quantidade de tempo possível. Nos concentramos no principal caso de uso e redesenhamos infinitamente, na base da tentativa e erro, até chegar em algo interessante."
Percebe a diferença? Em vez de dividir responsabilidades, eles concentram talentos diferentes num problema comum. Todo mundo contribui com sua especialidade, mas todos estão envolvidos na solução completa.
A volta do designer de verdade
Talvez seja hora de repensar essa fragmentação toda. Em vez de criarmos mais especializações, que tal voltarmos ao básico: designers que entendem problemas humanos e criam soluções elegantes para resolvê-los?
Designers que sabem falar com usuários quando necessário, que conseguem estruturar informação de forma clara, que dominam ferramentas visuais e que entendem como suas decisões serão implementadas. Designers que assumem responsabilidade pelo resultado final, não apenas por uma etapa do processo.
Isso não significa que todo designer precisa ser um generalista medíocre. Significa que todo designer precisa ter uma base sólida em todas as disciplinas fundamentais, mesmo que tenha preferências e talentos específicos.
A pergunta não deveria ser "você é UX ou UI?". Deveria ser "você é um bom designer?". E um bom designer, por definição, equilibra função e forma para criar produtos que funcionam bem e são prazerosos de usar.
Por favor, não me venham dizer que apenas um personagem é responsável pela experiência do usuário, porque isso não é real. É exatamente por isso que essa fragmentação toda não faz sentido nenhum.
Para se aprofundar mais:
- The Unnecessary Fragmentation of Design Jobs - Jonas Downey
- Podcast Movimento UX - Episódio com Felipe Memória sobre processo de design na Work & Co
- Why I love ugly, messy interfaces - Jonas Downey
- Design in Tech Report - John Maeda
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